Essa é uma crônica de uma morte anunciada, como o título da obra de Gabriel García Márquez.
Muita gente diz que perderemos a corrida tecnológica para os outros países do BRICS etc. (nem falo do primeiro mundo!) por falta de profissionais de tecnologia.
Os grandes players de mercado (Google, Microsoft etc.) oferecem cursos online gratuitos.
E as empresas médias brazucas tentam seguir esse caminho. Mas de forma equivocada.
Realidade em 2021
Em certa região fria do país ocorreu um forte movimento de empresas de software tentando amenizar tal escassez. Criaram um projeto para propiciar treinamento gratuito em linguagens de programação.
A mobilização foi grande – mídias sociais, televisão etc. – a tal ponto de me entusiasmar.
Recomendei à nossa diarista aproveitar a ocasião e colocar o filho dela de 17 anos nessa proposta.
Ela nunca tinha pensado nisso. Mas olhou o patrão com carro na garagem, moto BMW, ar-condicionado em todas as dependências da casa (não, banheiro não; nem cozinha; nem na área de serviço; nem na sacada; acho que exagerei), lareira e churrasqueira (ela esquece que o patrão já gramou muito capim pra chegar a isso) e achou que era um bom caminho pro sucesso do filho.
Pegou o link, foi atrás e dias depois…
Disse-me, com felicidade no rosto, que inscrevera o guri no curso de programação Java pagando R$ 3.000 parcelados em 10x.
Eu caí para trás!
“Como R$ 3.000? Os cursos são de graça, mulher!”
“Sim, seu Roberto. Mas somente os de modalidade online, os presenciais não.”
Online vs. Presencial
E por que não fizeste online?
“Seu Roberto, pra isso precisa ter computador e internet bons. E lá em casa tem somente aquele notebook antigo que o senhor nos deu e internet só de celular. E pré-pago.”
Na classe D e E, 85% dos usuários acessam a rede exclusivamente pelo celular, 2% apenas pelo computador e 13% pelo aparelho móvel e pelo computador.
Artigo – Impulsionada por wi-fi, metade da classe D e E acessa a internet – Uso por população economicamente vulnerável é marcado por aplicativos como WhatsApp
O artigo acima é de 2019, mas quanto melhorou de lá até aqui durante essa pandemia?
Pesquisei melhor – veja, eu não sou responsável pelas decisões e ações de terceiros – e confirmei o que ela me dissera. E caí surpreso.
Como as empresas querem formar mão-de-obra em programação através de cursos online?
Vejamos uma estratificação da população econômica:
- A classe A passa longe da ideia. Se não está em Miami, estuda para assumir as indústrias do pai, as fazendas do avô, a herança da tia ou se transformar num(a) digital influencer.
- A classe B – a tradicional classe média “, segue o modelo de sucesso dos pais: médicos, advogados, gerentes de lojas, contadores de indústrias, proprietários de revendas de veículos. E assim por diante.
- É na classe C e D onde as empresas podem jogar seus anzóis para batalhar mão-de-obra interessada em virar programador e melhorar sua posição econômica.
Isso é uma generalização.
Não há dúvidas que quaisquer pessoas de quaisquer classes podem se interessar pelos cursos online (eu sou oriundo da classe C; pai motorista de táxi e mãe funcionária pública das baixas esferas). Qualquer interessado pode roubar o wifi do vizinho, da loja da esquina ou da piscina do hotel no Caribe.
Infraestrutura das classes C e D
Mas dada a explicação nas bolinhas acima, a maior chance de captar novos colaboradores em programação reside nas classes C e D.
As quais têm internet de banda larga de péssima qualidade (salvo raras exceções, OK, OK).
Eu moro num bairro de classe média e até bem pouco tempo usava os péssimos serviços de internet de uma empresa de TV a cabo. Ticket altíssimo e taxa de upload de 0,1 Mb.
O que esperar de pessoas que moram em casas mais simples? Elas possuem prioridades mais relacionadas à sobrevivência imediata, como telhado pingando água, remédios para a saúde da vó, familiares desempregados e toda a saga de dificuldades de quem corre por oportunidades melhores.
E foi por entre outros motivos – computador ruim em casa, internet inadequada – que a diarista me disse que preferiu pagar essa grana para que o filho tivesse curso presencial e um futuro melhor.
Acho elogiável o gesto da família.
Não vai dar certo a iniciativa
Por outro lado, vejo como funesta a iniciativa do grupo de empresas, pois não resolverá o seu problema. Sim, o problema é delas: não conseguir crescer por falta de gente capacitada.
Por quê? Por que não desenharam uma “persona” do público-alvo da sua campanha.
A desigualdade social e econômica no Brasil é muito grande e provavelmente quem planejou a ideia, não considerou tal situação. Ou nem a compreende, pois não gravita nesse universo.
As classes com infraestrutura não querem ser programadores (claro, um ou outra embarcará nessa ideia). As classes sem infraestrutura são as mais interessadas em aproveitar tais oportunidades, mas…
Perspectivas
As empresas não estão em busca do próximo Bill Gates, convenhamos. Precisam de programadores – aos montes de preferência – para selecionar os melhores e dar andamento aos seu jeito de ganhar dinheiro e, de lambuja, melhorar a economia e sociedade ao redor.
Mas do jeito que vai, acho que não rolará, em minha humilde opinião.
Pelo amor de Deus, banquem uma escola pública. Uma ONG de favela (acho que comunidade é mais socialmente adequado).
Ofereçam aprendizado de programação como curso suplementar. Digam que as maiores empresas do mundo são da área de tecnologia. Falem da transformação digital (talvez seja demais).
Não se faz omelete sem quebrar ovos.
As empresas precisam investir decentemente para colher lá adiante: computadores para o pessoal de baixa renda (é mais elegante assim do que classe C e D?); internet de banda larga; quem sabe até lanche ou almoço.
A ideia de formar mão-de-obra é correta, o jeito (online) é que está errado, na minha opinião.
Abs
EL CO