As empresas de tecnologia precisam quebrar para renascerem
Quem for pesquisar na psicologia (e no seu ramo psicanálise) facilmente encontrará o mito de Zeus que, via de regra, é associado com o ser humano: seu pai, Chronos, engolia os filhos, um a um, para evitar que algum destes lhe sucedesse (do mesmo jeito que ele o fez com seu próprio pai). Na história original sua esposa, esperta, entrega uma pedra enrolada em roupas de bebê que ele prontamente devora acreditando ser seu mais novo rebento.
Bom, a analogia com o ser humano é a seguinte: chega obrigatoriamente uma hora em que é preciso dar lugar aos mais novos — pode ser uma ideia mais nova se formos subjetivos ou abstratos — e deixar a vida seguir seu curso. Estes farão suas próprias conquistas e assim por diante e os “velhos” poderão aproveitar o resto de suas vidas servindo como um “poço” de sabedoria ou, nos tempos de hoje, como membro do conselho de administração.
Recentemente eu prestei consultoria em duas empresas de tecnologia: uma de fornecimento de fibra ótica, telefonia, internet e televisão. Outra, uma software-house. Ambas bem-sucedidas, mas…
Mas Zeus (doravante chamado carinhosamente de Criador) recusa-se a largar o osso. E isso impede mudanças corporativas que alavancariam a empresa para outros patamares, pois por ter crescido, chamou a atenção dos concorrentes, criou estruturas de apoio que não produzem diretamente, distorceu seu foco do cliente e…
Aí a carga ficou pesada.
Do início
Acho que todo mundo conhece essa narrativa.
O Criador é o cara que faz tudo, desenvolve, instala, dá suporte, conhece o cliente “nariz a nariz” e assim por diante. Não existe central de atendimento. Ou melhor, existe e é ele mesmo que está disponível via celular em casa, no sábado, no domingo, à noite e tudo o mais e…
É tão bem-sucedido que termina precisando de ajuda externa (funcionários a serem contratados) para “manter o pique” e aproveitar as oportunidades que surgem por recomendações e assim por diante.
Destaca-se que o atendimento é sempre de primeira. Afinal, é o dono, principal interessado no crescimento do negócio (do faturamento inclusive). Estamos a falar do próprio Criador da tecnologia e que manja de cada detalhe do aparelho ou software instalado no cliente.
Mas como citei, ele precisa de ajuda externa… E cada vez mais.
E o mundo maravilhoso começa a derreter como manteiga na frigideira…
Ainda assim há crescimento vegetativo pela inércia da excelente qualidade prestada no passado.
Do que eu gosto?
Mas (esse texto deverá conter umas quatrocentas aparições do verbete “mas”) o que ele gosta mesmo é de desenvolver. De instalar. De configurar. De enfrentar problemas difíceis. E paulatinamente a importância da operação (na visão do criador) vai se acumulando na parte tecnológica em detrimento do atendimento.
Porém quando há pânico, o cliente sempre pode recorrer ao criador que a um toque de memória do celular surge para resolver ou encaminhar as pendengas.
Mas a empresa cresce. Departamentos são criados. Compras de outras pequenas empresas são realizadas e a barafunda começa a se agigantar, a burocracia se expande, engolindo tempo e recursos. E os primeiros sinais de desgraça surgem no horizonte.
É importante lembrar que o Criador é um empreendedor, não um empresário.
O empreendedor tem seu tesão, sua excitação, sua veia artística na criação de fatos novos. Na produção de coisas novas, na ultrapassagem de desafios, de barreiras.
E será assim para sempre (quase sempre também participam de competições esportivas ou coisas parecidas que permitem vencer os limites do seu corpo do da sua máquina — um carro, uma moto, ou coisa parecida). O espírito de competição é presente. Raros são os casos nas pequenas e médias empresas que não está presente esse animus bélico ou de rivalidade, de concorrer.
Suporte, um desafio a ser vencido
E infelizmente não é o empresário e sim o empreendedor que avista o problema do suporte como um desafio a ser resolvido.
Enfia-se lá, cria uma montanha de métricas, de procedimentos, de rotinas, crê que todo mundo no atendimento tem seu mesmo espírito (às vezes promove alguém a gerente por ter o seu mesmo perfil) e cai fora. Com orgulho, pois agora existem inúmeros controles. Que geralmente são uma bosta droga, pois medem eficiência e não eficácia.
Temporariamente as coisas melhoram, pois foi o próprio criador a estar conosco, energizando o ambiente, dando-nos prestígio, cagando orientando normas, padrões e assim por diante. Mas passado um tempo, as coisas voltam ao “normal” no suporte técnico. Normal é… você sabe bem: abandono.
Pressão, tudo é urgente, falta de recursos, alta rotatividade, queima de jovens talentos que caem fora, confusões, silos de conhecimento, ausência de registro de chamados, desconhecimento do produto, falta de organização em geral e assim por diante.
Mais adiante e na agonia da paciência
A certa altura o Criador lamenta-se pela situação do suporte técnico. Diz que mantê-lo em ordem é quase como organizar uma fila reta de gatos. Não dá. Se cada departamento tivesse um cérebro e fosse um passarinho, o suporte técnico seria um que voaria para trás. Desânimo.
Uma solução messiânica (ensino isso seguido nos meus cursos de Gestão de Serviços para Help Desk e Service Desk) é o próximo passo. Compreenda a expressão “messiânica”: é algo que vai nos salvar. Mas que nunca chega.
É um software melhor de registro de incidentes. É um treinamento para a equipe (“— Pronto, aí está! Satisfeitos?”). É um consultor. É uma mudança. É alguém. Que nunca chegará, claro, por que senão deixa de ser o salvador.
Cabe destacar que, em paralelo, outras áreas da empresa, preferidas pelo Criador pela sua ausência de rotina e chances de novos desafios, são altamente prestigiadas e recebem recursos sempre em antecipação. Fazer um bom software exige que toda a equipe de desenvolvimento receba certificação. Ou mandar o pessoal do NOC para treinamento no exterior, etc. Ou…
Só que a essa altura do campeonato o Criador perdeu o foco…
Ele nasceu atendendo as necessidades do cliente.
Eu coloquei um negrito em atendendo.
Por que é assim que começou. E é justamente essa área que está relegada a ser ocupada por estagiários; a ter zero de investimento em capacitação para fazer melhor; a ser a última certificada em alguma coisa; a ser o bode expiatório de todas as mazelas da empresa (tudo o que o cliente vê, é o suporte e é dele que reclama da má instalação, falhas daqui e acolá, bugs, demora nas respostas e assim por diante).
E o que é mais ridículo:
É justamente a área que percebe todas as novas oportunidades comerciais antes de todo mundo. É ela que sabe do que o cliente precisa. E no que a empresa precisa melhorar. Ela é — com menos competência e respeito — o que alavancou o Criador a alcançar tal sucesso.
Para a forca com o suporte técnico
E as empresas de tecnologia se esforçam em suprimir ao máximo essa área de atendimento ao cliente, oferecendo autosserviço; obrigando-os a criarem novos chamados somente via WEB (onde se perde a oportunidade de identificar novas chances de business); empurrando-os para as redes sociais (isso foi piada gente, brincadeirinha… quase ninguém oferece isso ainda, o que seria uma boa).
Ou seja, virando as costas justamente para aqueles que trazem o faturamento para a empresa.
O que acontece é que tornam seu produto ou serviço uma commodity. E como tal, não percebem a grande probabilidade de perigo que é o risco do cliente facilmente trocar por outro fornecedor, salvo…
Salvo se a empresa ajudasse seu cliente naquilo que ele precisa e nem mesmo percebe.
Eu posso identificar gaps de dúvidas no uso do software e oferecer treinamento ao cliente para que seus funcionários sejam mais produtivos. Se oferto internet, posso verificar os horários de maior tráfego desse cliente e oferecer planos diferenciados. Eu posso ouvi-lo ao telefone e identificar que ele deseja aumentar sua velocidade de banda larga em vez de empurrá-lo para um ambiente de autosserviço.
Aliás, acabei de ler um relatório da Comscore The M-Commerce Gap: Why Dollars Continue to Lag Shopping Behavior on Mobile que apresenta os principais inibidores de compras online, entre eles: a dificuldade de ver os detalhes do produto, da navegação entre telas ser complicada e até de ser difícil informar seu nome, endereço e a forma de pagamento. Empurre seu cliente para o ambiente online e veja lá…
Eu poderia falar horrores (não errei a expressão, é essa mesma) sobre a dificuldade de mudar a cultura corporativa das empresas de tecnologia que estão tentando alcançar a maturidade. Quais as situações mais comuns:
- Querer continuar empreendendo e fazendo coisas novas, sem explorar o que já existe.
- Esquecer-se do atendimento como mecanismo primordial para sustentação do negócio.
- Fortalecer outras áreas em detrimento do suporte técnico.
- Não mudar (ou retomar) a cultura organizacional em prol do cliente (não confundir com cultura condescendente com o cliente, o que é bem diferente).
Harvard Business Review
Sobre o último item, ontem li um artigo na Harvard Business Review interessante e que trata exatamente disso: GRANDES empresas que passaram por esse problema, mas adotaram diferentes soluções — cada uma a seu jeito — para estarem mais próximas do seu cliente.
O artigo é How IBM, Intuit, and Rich Products became more customer-centric e merece profunda reflexão. Aliás, muito mais, merece um baita artigo adicional aqui no blog.
Da minha sugestão
Normalmente criam-se feudos ao natural. As pessoas desejam proteger seus pontos de vista, ideias, empregos, etc. E viram parafusos emperrados que prejudicam o andamento da máquina e sua lubrificação. Há todo um conjunto de mecanismos latentes (aqueles que não são vistos) que emperram o desempenho da empresa em prol do cliente.
Mudar tudo isso e reformar a disposição do criador em empreender, em impedir seus olhinhos de brilharem diante de uma ideia nova que tire a empresa dos trilhos preestabelecidos, de seguir um planejamento sem pipocar ou borboletear por novos projetos e principalmente, de lembrar onde está o dinheiro:
No atendimento e percepção das necessidades do cliente.
Sim, muitas áreas de atendimento e suporte técnico podem melhorar bastante, até pelo descaso com que viveram nos últimos tempos da empresa.
Mas as outras áreas não vivem para si mesmas, nem podem se tornar autistas (“polarização privilegiada do mundo dos pensamentos, das representações e sentimentos pessoais, com perda, em maior ou menor grau, da relação com os dados e as exigências do mundo circundante” by Houaiss).
É preciso mobilizar todo mundo para compreender que o discurso da empresa deve ser um só.
Como as duas consultorias progrediram?
Para não fugir ao clima grego tão em voga ultimamente, elas terminaram com Deus ex machina.
Atenção
Agosto tem curso de Gestão de Serviços de Help Desk e Service Desk em São Paulo e setembro, em Porto Alegre.
Venha discutir nossos temas durante quatro dias. E ainda por cima você leva meus três livros de inhapa!
Abrazon
EL CO